ZÉ TEPEDINO: TUDO É A FORMA QUE FALA

por: Kiki Mazzucchelli


Entre o final de 2019 até 2021, Zé Tepedino realizou inúmeras intervenções efêmeras em diferentes espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro, sempre contando com a ajuda de amigos para carregar materiais, montar estruturas e documentar a obra. Realizadas improvisadamente e sem nenhum tipo de autorização oficial, essas ações reverberam, em certa medida, o espírito subversivo de um Flávio de Carvalho, que, ao deparar-se com uma procissão de Corpus Christi no centro de São Paulo, em 1931, decidiu caminhar contra o fluxo dos fieis para realizar um experimento sobre o comportamento das multidões. Menos científico e talvez mais lúdico, Zé Tepedino parece se interessar sobretudo pelo potencial estético dessas intervenções na paisagem urbana. Em Encantado – Linha Amarela, o artista pichou um jogo de amarelinha na pista central da via expressa carioca, numa ação arriscada que depende de momentos de pausa no tráfego intenso. Outra intervenção, dessa vez na praia em São Conrado, consistiu em uma escultura temporária construída com pedaços de telha Brasilite encontrados, com comprimentos variáveis, enfileirados verticalmente em frente ao mar de modo a formar uma espécie de desenho topográfico. Na mesma praia, no dia de São Cosme e Damião, Zé Tepedino criou um playground de esculturas construídas com tábuas e sarrafos inspiradas na forma dos brinquedos de parquinhos públicos. Eram, no entanto, brinquedos escultóricos: no escorregador, a rampa com queda em 90 graus; na gangorra, as duas tábuas formando um “x” fixo, tudo isso impedia que pudessem ser utilizados da maneira tradicional e dentro dos protocolos de segurança.

A exposição Tudo é a forma que fala, primeira individual de Zé Tepedino na Galeria Triângulo abre com uma dessas peças, instalada no espaço externo da galeria: um balanço preso cujas cordas são atadas à duas estruturas simetricamente posicionadas, de modo que o assento se encontra num permanente estado de suspensão. No interior do edifício, encontramos um grupo diverso de esculturas, obras de parede, filmes, entre outros trabalhos produzidos nos últimos cinco anos. Parece justo dizer que Zé Tepedino pertence a uma longa tradição de artistas – do Dada, Surrealismo, Pop, Novo Realismo, Arte Povera e além -que trabalham a partir de materiais encontrados, criando composições a partir da assemblage desses objetos. A ênfase, no caso de Zé, é no encontro com as qualidades físicas do material (a forma) que, por ser na maior parte das vezes um material de segunda mão, já vem carregado de informações acumuladas ao longo de sua existência prévia como objeto utilitário. São, ainda, materiais corriqueiros, que fazem parte tanto de seu cotidiano urbano (os guarda-sois, as telas de proteção de canteiros de obras) quanto do dia-a-dia privado (os cabides, os chinelos de borracha, os livros).

Sua metodologia de trabalho seria análoga, nas palavras do próprio artista a “(u)ma certa maneira de se falar as coisas, um improviso com as palavras”. Nesse sentido, cada objeto ou material utilizado em suas construções equivale à um vocábulo, um termo, uma palavra, cujo sentido se transforma dependendo do contexto e da maneira em que é empregado: quais são os outros termos dessa sentença, se está sendo gritado, sussurrado, falado com afeto, raiva, humor, podendo expressar infinitos significados dependendo de como se apresenta ao mundo. Zé Tepedino cita o cineasta Eduardo Coutinho: “Não existe assunto novo. Apenas maneiras diferentes de se falar sobre eles.” A forma, na obra de Zé, pode ser uma assemblage de objetos, mas pode ser também uma experiência no espaço, uma imagem que se constrói, ainda que momentaneamente, numa paisagem urbana. Mas, o ponto de partida é sempre a matéria, suas características formais. O trabalho é uma resposta àquilo que já existe no mundo. Vejo aí uma atitude quase meditativa, uma certa calma na observação minuciosa dos detalhes que cada objeto carrega, quase como alguém que busca compreender uma língua desconhecida para aí então iniciar um diálogo. Tudo começa na forma, na matéria.

Justamente, por ser a forma uma linguagem tão maleável e distinta da linguagem verbal, ela não se encerra em uma ideia ou proposição predeterminadas, ela não é ilustração de um pensamento. Há, na obra de Zé Tepedino, um repertório de materiais, que seriam suas “palavras”, a partir do qual ele constrói sua linguagem. Vejo esse repertório de Zé como um repertório que se cruza, formalmente, com um vasto inventário de obras icônicas de artistas da vanguarda do século XX e de contemporâneos, às vezes ambos simultaneamente. No conjunto apresentado na Galeria Triângulo, vejo ecos dos combines Rauschenberg, alusões aos concretos e neoconcretos até a Marisa Merz, Eva Hesse, Alexandre da Cunha, entre muitos outros. E, no entanto, as obras de Zé trazem uma abordagem DYI, um humor, e um poder de síntese que fazem com que sejam unicamente suas, expressões de uma linguagem própria que dialoga com aquilo que existe no mundo. Na verdade, não sei o quanto Zé conhece ou se interessa por nenhum desses nomes que citei, e isso nada importa. Pois não é a forma justamente essa linguagem outra, que permite que cada um encontre ali associações e referências que tem a ver com sua própria vivência? Tudoé a forma que fala, mas nem todos escutam a mesma coisa.


Fevereiro de 2023

O RAIO VERDE

by: Julie Dumont


The green ray, or green flash, is a meteorologicaloptical phenomenon that sometimes occurs transiently around the moment of sunset or sunrise. When the conditions are right, a distinct green spot is briefly visible above the upper rim of the solar disk; the green appearance usually lasts for no more than two seconds. Rarely, the green flash can resemble a green ray shooting up from the sunset or sunrise point.

Echoing Jules Vernes´ eponymous novel, which crossed the ocean in Zé Tepedino´s luggage, the quest for the green ray implies a search for the horizon, an ability to look beyond what is familiar. O Raio Verde, closing Tepedino´s residency at ZSenne ArtLab, offers a visual transposition of this research towards a broader perspective, departing from the artist´s subjective standpoint.

Crossing through Belgium from border to border, alongside the coastline or wandering in the streets of Brussels, Zé Tepedino reveals a playful operating system that redefines the contours of his environment. In an attempt to recreate the salted memories that permeate his life and work experience in Brazil, trailing on the margin of the world, the artist gathers found objects,exposing an attentive gaze for what is not visible at first sight, for what is supposedly disappearing. Dislocating these scavenged residues from their initial function and providing them with new meanings; sorting out volumes, shapes and hues, playing fluidly with the materials´ density, the artist cancels the underlying tension between hard and soft, geometry and organicity, urban and nature. Leaving room for the material to express its essence and the larger memories it contains; the artist rearranges a world, in which the low saturated color palette reveals the fading effect of time and exposure to the sun and ready-made objects and assemblages invoke the ocean breeze and the horizon line.

Like this, a grid made of intertwined straps and feathers recalls a fishing net or a boat rope ladder. Pages of books that once told travel tales or ocean crossing stories are assembled into organically shaped sculptures or cover the windows as a kind of expanded painting, inverting the common use to hide empty shopwindows from passersby and enhancing the space occupation. A sliced foam mattress and clothes hangers’ curves allude to wave undulations, while assembled bandages mimic a sail or flag and a stained bath towel conjuncts the horizon line of a maritime painting. Finally, a video invites us to follow the artist´s footsteps along the coastline, echoing Tepedino´s attention for what literally exists at the margin.

Stitching, threading, assembling, or walking; Tepedino´s poetics revolve around time and memories contained in discarded elements, which he arranges to understand the world. Following German philosopher Hans-Georg Gadamer, this understanding only happens with the fusion of different horizons: the artist´s and the viewer´s, the past and the present, the object, the thought process, and the language; creating the contours of a new psychogeography, appropriating spaces through imagination, like tiny islands that would shift and gather in archipelagos of a common understanding, a new Pangaea.

Central to Eric Rohmer's 1986 film, the green ray is believed to give a heightened perception to those who view it, one of the characters further explaining that "when you see the green ray you can read your own feelings and others too". This is probably where the artist stands, in a transient moment where balance is found between the quiet observation and the movement of the artmaking, in the dialogue that the artistic experience implies between the artist, the viewer and the artwork, in a fusion of subjective horizons, possibly allowing us to better understand our surroundings, to see what is nearby and beyond.

“The concept of horizon suggests itself because it expresses the superior breadth of vision that the person who is trying to understand must have. To acquire a horizon means that one learns to look beyond what is close at hand – not in order to look away from it but to see it better”. Hans-Georg Gadamer.

Julie Dumont

SEGUINDO A LONGARINA, ENCONTRA-SE UM MUNDO ENCANTADO

por: Julie Dumont


Partindo da matéria, Zé Tepedino segue um jogo intuitivo de experimentação, deslocamentos, torsão e negação de regras, no qual objetos descartados (re)encontram um significado. Ao observar o cotidiano da rua ou da praia, o artista absorve elementos do banal que ele dispõe em arranjos que parecem refletir as suas andanças na cidade ou o vai-e-vem de um dia no mar. Da tranquilidade da observação e do silêncio do caderno até o movimento do ateliê, Zé Tepedino propõe uma organização do mundo na qual ele reinventa uma integridade aos seus resquícios abandonados.

Assim, barracas e cadeiras de praia ou sacos de ráfia viram pinturas expandidas, evocando bichos marinhos ou formas orgânicas, enquanto tiras de chinelos elaboram composições geométricas. A associação destes elementos contém as contradições e as oposições que permeiam o pensamento do artista.

O tempo demorado da costura, do tear e da delicadeza de um olhar atento à poesia das ruínas se contrapõem à precariedade aparente das obras, a um tempo matemático e frio da decomposição dos nossos rastros na natureza e encontram-se em um campo comum no qual o artista resolve as tensões entre orgânico e sintético, o mar e o caos da cidade.

De fato, parece que uma brisa sopra na obra de Zé Tepedino, amenizando o sol incandescente, que, por sua vez, suaviza as cores dos seus arranjos. Nascido e trabalhando no Rio de Janeiro, o artista transfigura o atrito que existe entre praia e asfalto e cria um interstício onde convivem o pulso da cidade e o fluxo das ondas. É neste equilíbrio que só existe no movimento, nesta visão abrangente do ritmo de um todo abraçado em sua diversidade e complexidade, que se revela o olhar de quem sabe ler o vento e as ondulações do mar para se enfiar nas ondas. Esta atenção às coisas imperceptíveis, a observação do sutil de quem mora na dobra da natureza – no caso da onda - é o que aproxima o surfista do artista, o Zé do Tepedino. Pois o artista também integra, na sua prática, a captura de um momento fugaz, usando o impulso da matéria e do seu entorno para organizá-los. Se aproveitando das suas texturas e cores, dos seus encaixes e relevos em um novo redefinir.

Este pensamento, que se concretiza no acúmulo e na repetição no campo da matéria, também se desdobra no campo da paisagem, marítima ou urbana trazendo formas orgânicas ou elementos arquitetônicos para pontuar o espaço público. Assim, telas de nylon ou lonas plásticas ondulam no vento e mimetizam as velas de navios ou as frestas das ondas, ou ainda, propiciam um abrigo dos raios do sol para uma escultura, enquanto telhas onduladas se sobrepõem a linha do horizonte e outdoors de tecido ornam terrenos baldios.

Com o seu conjunto de obra, o artista parece sintetizar uma seleção subjetiva das imagens que nos cercam, criando um vocabulário minimalista de formas abstratas cujo significado, mesmo deslocado e reduzido a sua expressão mais simples, ainda evoca, entre as linhas, o menor denominador comum de uma figuração familiar. O artista integra e coloca assim em diálogo referências diversas, olhando no retrovisor do concretismo, do modernismo ou do Neo-Dada assim como de artistas cujas práticas singulares continuam como um mistério como o Bispo do Rosário, sem deixar de capturar a fugacidade do agora nem perder de vista a estrada à frente. A estética depurada de Zé Tepedino mora assim nas dobras da natureza e do mundo e substitui uma abordagem fluida e intuitiva, um ritmo sem rupturas ao tempo acelerado e fragmentado contemporâneo. Ao seguir a longarina da sua prancha ou as costuras das suas composições, podemos assim encontrar um mundo encantando no qual a organização segue os tempos próprios da matéria, em fluxo.

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